"ATÉ QUALQUER DIA"



Eu estava em Nova York. O fim da tarde trazia uma nostalgia semelhante ao fim de um casamento. Eu estava andando sozinho por uma ponte com um copo de café na mão, grande demais para eu dar conta sozinho. E num certo ponto daquela ponte encontrei um sujeito de casaco de lã e touca. Ele estava com muito frio. Mais frio do que eu. Ele puxava as mangas do casaco para cobrir o dorso das mãos. Ele puxava a gola para que cobrisse sua boca. Ou era frio ou estava incapaz de fazer alguma coisa ou de dizer alguma coisa.

- Olá... – disse eu, me sentindo um completo idiota - Aqui em cima é mais frio. Não devia ficar parado aí. Do outro lado da ponte venta muito menos...

E ele olhou para mim com olhos perdidos e me disse que para onde ele iria não teria mais que se preocupar com frio.

Logo reconheci o perigo da situação. Várias cenas de filmes passaram pela minha cabeça e num instante senti-me heróico. Senti que deveria fazer algo a respeito, até por que se não fizesse, a vida daquele sujeito acabaria diante dos meus olhos, bem antes do meu café.

- Escute – disse a ele – Eu sei por que quer fazer isso!

Sentado no parapeito ele se virou para mim com indignação e descrença. Nunca vou me esquecer disso. Então continuei dizendo a ele que a vida prega peças na gente e que ela pede que façamos planos, que sonhemos e que lutemos por coisas distantes e a vida sabe que a nossa capacidade de sonhar é bem mais eficiente do que a de fazer. Disse a ele “pra que ter outro dia pela frente? Para começar algo que não sabemos se estaremos vivos para completar?”

E ele chorou.
E então eu cheguei mais perto e lhe ofereci meu copo de café.

- Beba.

Ele estava confuso.
Eu também estava.

- Pode se matar. Mas não pode fazer isso antes de provar um gole desse café com canela. Está bom pra cacete!

Ele sorriu.
Sorriu e a musculatura do seu rosto fez com que as lágrimas guardadas caíssem sem saber.
O rapaz segurou o copo com as duas mãos, sentiu o cheiro forte de café e canela então sorveu lentamente, como se estivesse tomando um remédio.

- Obrigado.
- Eu que agradeço. Olha o tamanho disso! Nunca iria acabar com esse café sozinho. Você me ajudou.
Ele procurou meus olhos e disse:
- Eu sei o que está tentando fazer. Não vai dar certo. Assim que eu te devolver esse café, meu amigo... estarei lá embaixo. Pode apostar que vou.
- Certo. Pode fazer isso. Sei que é estúpido, mas não sabia que era ingrato.
- Ingrato?
- Divido com você meu café e você nem vai aceitar meu convite para visitar minha filhinha que acabou de nascer.

Ele parou por um tempo. Tenho certeza de que não estava pensando em nada. Sua mente devia estar vagando até voltar para a próxima pergunta, no ponto onde parou.

- Você tem um bebê...?
- Ela é linda...! Tem só vinte dias. Como alguém pode ficar tão linda em tão pouco tempo?! Rsrsrsrs... E você... tem filhos?
- Eu? Não.
- Então não pode morrer antes de segurar um bebê no colo. Não faz idéia da sensação! O que me diz, huh?
- Sinto muito. Mas tenho que fazer... o que vim aqui pra fazer.
Desviei minha atenção dele e olhei para baixo. Era alto. Era assustador.
- Bom, já estaria morto dez minutos atrás, mas ainda assim parou pra tomar café. Se não acha minha Juliene tão importante, então...
- Juliene? - disse ele como se lembrasse o nome de uma canção.
- Éh... Minha esposa queria que se chamasse Mary-Ann mas como ela nasceu agora em julho acabou ficando July-Ann.
- Huh, sorte ela não ter nascido em novembro!
- É verdade rsrsrsrsrrsrsrs...

Uma pausa entre os risos e ele segurava o copo de café apenas por sentir o seu calor.

- É um bonito nome. É bonito mesmo...
- O que me diz? Não gostaria de conhecê-la?

Então uma coisa fantástica aconteceu. Sem que eu pedisse o sujeito largou o copo e em um pulo desceu do parapeito. Suas botas fizeram um som oco e pesado no chão que me assustaram um pouco. Ele ajeitou sua touca, esfregou o nariz e os olhos e disse pra mim “Você mora longe?”

Eu não me contive e sorri.

Nós dois caminhamos até o fim da ponte. De lá tomamos um táxi e quando chegamos em casa ele conheceu minha família. Foi mágico. Era outra pessoa. Tomamos mais café, nos conhecemos melhor e no fim do dia ele aceitou meu convite para dormir no sofá. Entre uma coisa e outra nós conversamos bastante e o motivo dele querer se matar naquela tarde eu nunca soube. Mas ele soube o motivo de eu querer viver. E acho que isso é que foi importante.

Em algum momento me lembro de ter dito a ele que eu não sabia se estaria vivo quando minha filha se casasse ou entrasse para a faculdade e, mesmo que estivesse, tinha certeza de que não estaria vivo em algum ponto importante de sua vida. Algo eu deixaria passar. A história da vida de cada um é tão repleta de coisas boas e ruins e tudo acontece numa sucessão tão progressiva, seria impossível para qualquer um de nós ter a plenitude dos nossos sonhos, mas saber disso não diminuía o meu desejo de estar mais um dia com ela, de ter um dia diferente com ela, com a minha Juliene.
Do mesmo modo como ele quis estar vivo para o próximo café eu queria estar vivo para o que viesse a seguir. E se eu não chegasse a fazer com ela e minha família tudo o que eu imaginei, então eu saberia e eles também saberiam, que eu cheguei o mais longe que pude.

Nunca mais vi aquele sujeito, mas tenho certeza que ele não voltou para aquela ponte.
Pela manhã quando acordei ele não estava mais lá, porém, tinha deixado um recado num guardanapo ao lado da minha cafeteira:

“Obrigado pelo café.
Você tem uma linda família.
Até qualquer dia.”






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