O PAR DE BOTAS

José mexia nas graxas e tintas de sua maleta sentado no banquinho, num cantinho modesto da pracinha. José era um jovem negro de traços retos, rosto mau barbeado e olhos fundos. Era baixinho e usava colete e calças marrons.


Um homem alto, magro de trinta e poucos parou em sua frente fazendo uma sombra esguia.

- O senhor é engraxate?

- Sim, eu engraxo.

- Pode dar um jeito nos meus sapatos?

O homem branco apático, de rosto magro levantou o bico dos seus pés revezando o equilíbrio entre um calcanhar e outro. Os sapatos eram pretos e combinavam com todo o terno cinza que vestia. Estavam novos, porém meio arranhados.

- Mas é claro. Sente-se aí.

José abriu sua maleta e separou o material necessário. Tinta preta, graxa preta, pincel da tinta preta, escova e uma flanela.

- E depois eu gostaria que desse um jeito nos da minha esposa. Aqui estão.

O cliente lhe estende uma sacola de papel, de alguma loja de roupas finas. No interior, José encontrou um par de botas de camurça bege e ao tirá-las da sacola permaneceu parado perante elas, com um olhar gelado e distante.

- O que foi? Não trabalha com botas?

- O que? Oh, não, desculpe. Eu estava pensando numa coisa.

- Olhando para uma bota? Em que poderia estar pensando? – o cliente riu e pegou um jornal que estava ao seu lado. José não riu.

Percebendo a mudança de aspecto do engraxate o cliente pigarreou e achou ter dito alguma coisa errada.

Com aquele par de botas nas mãos, José era transportado para uma parte da história da sua vida. Uma parte não muito boa de lembrar. Mas agora era tarde demais.

- Perdoe-me só quis fazer uma piada.

- Oh, não. Não se sinta culpado é que... botas me trazem lembranças ruins. Lembranças dolorosas, melhor dizendo.

- Não entendo...

- Tem tempo para uma história curta?

- Bom, não posso sair daqui até ter os sapatos engraxados, não é?

Os dois homens exibiram um sorriso franco e amistoso.

- Então escute. Está vendo aquela rua? Depois do mercado.

- Sim, vejo.

- Eu costumava fazer o meu ponto ali. Não faz muito tempo que isso aconteceu e por isso é tão estranho. Eu estava apaixonado por uma moça que morava naquela rua. Se chama Sara. Ela era encantadora. Saía todos os dias muito alegre de casa. Muito alegre mesmo. Tinha impressão de que sua casa devia ser o lugar mais confortável do mundo. Saía para estudar com um sorriso largo e quase todas as vezes que a vi estava balbuciando alguma musiquinha.

Ela saía às 8 da manhã, almoçava meio dia, ia para o estágio do outro lado da cidade e quando voltava eu já não estava mais lá. Não me lembro de ver alguém tão linda em toda a minha vida. Leve, alegre, cabelos cumpridos, magra... Me apaixonei por ela desde a primeira vez que a vi. Há seis anos... E desde este dia eu quis conhecê-la, falar com ela e com sorte até conquistá-la.

- E nunca falou com ela?

- Bem, o senhor pode ver pela cor das minhas mãos que eu não era o tipo de cara que pode aparecer na porta dela e convidá-la para sair. Eu não ligo muito pra isso, mas é uma realidade. Mas eu não podia impedir o meu coração quando a via. E ficou mais difícil ainda quando ela começou a me notar e a acenar para mim. Bom dia e boa tarde. Durante muito tempo eram as melhores palavras que eu podia ouvir num dia. Saía de casa já esperando por isso. O senhor já deve ter se apaixonado, deve saber como é. Sei que cada um aprende a lidar com isso de uma maneira diferente e eu não disfarçava. Era apaixonado daqueles bem bobo mesmo.

- Entendo, - riu - mas e quanto as botas?

- As botas... Como eu disse, eu teria chances mínimas com ela. E ela era bonita. Então o senhor pode imaginar que ela teve, durante esses anos, alguns namorados. Dois namorados. E eu reparei que toda vez que ela ia encontrar com um deles, ou com alguém quem estava interessada, ela usava botas.

- Por que?

- Pra ficar mais alta, mais confiante eu suponho. E, meu amigo, se me permite te chamar assim, não há nada mais doloroso na vida, no que se trata do coração, do que saber que quem você ama está saindo para se encontrar com alguém. Ter uma pista disso te leva à loucura! Você quer impedir, parar o tempo, deter todas as circunstâncias envolvidas. Você pensa que não é justo que ela tenha sentimentos por outra pessoa sem saber quais os que você sente por ela. Sente que os dois estão perdendo tempo e que a vida está girando da maneira errada. E sente, acima de tudo, que ninguém pode amá-la mais do que você. É difícil. Difícil mesmo. Eu levo uma vida dura e te contaria coisas que faria com que tivesse pena de mim, mas quando eu a via saindo de botas... Por isso que as botas da sua esposa não me deixam com uma cara boa no rosto. Me faz lembrar de como eu me sentia. De coisas que a gente guarda abafado, entende?

O cliente assentiu pesarosamente com a cabeça.

- Enfim... O que dizer? Esta é a história. Não é uma boa história, mas... E seus sapatos estão como novos!

- Muito obrigado. Mas deixe os de minha esposa para outro dia.

- De maneira nenhuma, eu os faço. Essas coisas não podem nos atrapalhar para sempre, não é mesmo?

- Você é um bom rapaz...

- José.

- José. É um bom rapaz. Tenho certeza que ela teria sido feliz contigo, se a vida tivesse sido diferente.

- Eu também acho. Mas no fundo, tenho que admitir a chance de que às vezes às coisas são como deviam ser. Entende, o amor é tão estranho que nem Deus interfere. De todos os problemas e males que podem maltratar uma pessoa, o amor é o único que nem Deus resolve. Deus é amor. Mas Ele respeita a vontade humana. E amar depende da vontade do outro, não Dele. Todas as vezes que eu a via de botas, me lembrava de que ninguém podia fazer nada por mim. Nem o Deus que eu acredito.

O cliente levantou-se e pagou-lhe, generosamente arredondando a conta com uma nota de valor alto. Agradeceu pelo trato nos sapatos, o bom atendimento e pela história.

- Posso lhe fazer uma pergunta antes de ir? - perguntou.

- Claro.

- Sobre a sua história.

- Estou ouvindo.

- Se um dia vocês dois se encontrassem, e ela tivesse tempo de se preparar para isso, que calçado acha que ela usaria para te ver?

José abriu um sorriso caído de melancolia, abaixou a cabeça para si e depois dirigiu um olhar doce para o cliente.

- Meu amigo... não há um só dia em que eu não durma pensando nisso.

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